09 July 2008

Réquiem

Pensei em falar "Quando eu tinha 19 anos..." mas isso faz muito tempo. Outra vida. Com fantasmas que me visitam às vezes em realidades que invento.
Às vezes penso se eu estivesse morrendo meus amores viriam até mim? Meus amores antigos, aqueles que mais doeram, diriam adeus de verdade ou me deixariam partir como um dia me deixaram.

Posso dizer que estou morrendo, mas os finais e os adeus eu já os tive antes.


Existe um instrumento chamado quena, que é feito de ossos humanos. Tem origem no culto de um índio dedicou à sua amante. Quando ela morreu ele fez dos seus ossos uma flauta. A quena tem um som mais penetrante, mais persistente que a flauta vulgar.

Aqueles que escrevem sabem o processo. Pensei nisto enquanto cuspia meu coração.

Só que não estou à espera da morte do meu amor.

Estou doente de persistência de imagens, reflexos e espelhos. Eu sou uma mulher com olhos de gato siamês que por detrás das palavras mais sérias sorri sempre troçando da minha própria intensidade. Sorrio porque presto atenção ao OUTRO e acredito no OUTRO. Sou marionete movida por dedos inexperientes, desmantelada, deslocada sem harmonia; um braço inerte, outro remexendo-se a meia altura. Rio-me, não quando o riso se adapta ao meu discurso, mas porque ele se implica nas correntes subjacentes do que eu digo.

Quero conhecer o que corre lá embaixo assim pontuado por convulsões amargas. As duas correntes não se encontram. Vejo em mim duas mulheres bizarramente ligadas uma à outra como gêmeos de circo. Vejo-as arrancarem-se uma da outra. Consigo mesmo ouvir o rasgão, a ira e o amor, a paixão e o sofrimento. Quando esse ato-deslocação de repente pára - o silêncio torna-se então ainda mais terrível um vez que a minha volta não há senão loucura, a loucura das coisas que atraem coisas dentro de cada um, raízes que se afastam para crescerem separadamente, tensão provocada para atingir a unidade.

Uma barra de música chega para fazer parar a deslocação por um instante; mas eis que o sorriso volta e eu percebo que ambas saltamos para dentro da coesão.

Imagens - que trazem a dissolução da alma no corpo como a ruptura do ácido-doce do orgasmo. Imagens que sacodem o sangue e formam inúteis a futura vigilância do espírito e a desconfiança face aos êxtases perigosos. A realidade afogara-se e a fantasia sufocava cada uma das horas do dia.

AS MENTIRAS CRIAM SOLIDÃO.

Tu deixastes a tua marca no mundo. Eu apenas atravessei como um fantasma. Será que de noite alguém dá falta do fruto caído da arvore, ou pelo morcego que vem contra a janela enquanto os outros falam, ou pelos olhos que refletem como água e bebem como mata-borrão, ou pela piedade que vacila como luz de vela, ou pelo conhecimento seguro sobre o qual as pessoas adormecem?

Até a minha voz veio do outro mundo. Fui embalsamada nas minhas mais secretas vertigens. Estive suspensa sobre o mundo escolhendo o caminho a percorrer de modo a não pisar nem a terra nem a relva. O meu passo era um passo cauteloso; o mínimo ruído do cascalho fazia que parasse.

Quando te vi escolhi meu corpo.

Vou deixar-te levar-me até à fecundidade da destruição. Por isso me atribuo um corpo, um rosto e uma voz. Eu sou-te como tu me és. Cala o fluxo sensacional do teu corpo e encontrarás em mim, intactos, os teus medos e tuas penas. Descobrirás o amor separado das paixões e eu descobrirei as paixões privadas de amor. Sai do papel que te atribuis e descansa no centro dos teus verdadeiros desejos. Por um momento deixa as tuas explosões de violência. Renuncia à tensão furiosa e indomável. Eu passarei a assumi-las.

Pára de tremer, de te agitar, de sufocar, de amaldiçoar, e reencontra no teu fundo que eu sou. Descansa das complicações, distorções e deformações. Por uma hora serás eu; ou antes, a outra metade de ti próprio. Aquela parte de ti que tu perdestes. O que queimaste, partiste, estragaste encontra-se entre as minhas mãos. Eu sou guarda de coisas frágeis e preservei de ti o que há de indissolúvel.

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